Na história da humanidade, é comum as tecnologias surgirem para um fim muito específico e depois se popularizarem. Mais antigamente, era o caso das tecnologias bélicas, que depois passaram a ser desenvolvidas para os civis, como conta a história da Internet e dos GPS. Muito num pensamento de “essa é coisa é muito boa para ser usada apenas para isso”.
Este pensamento tem sido muito usado atualmente para as tecnologias que envolvem os bitcoins, como o blockchain. Já conversamos aqui no blog sobre como ele pode e provavelmente será usado para outros mercados além das criptomoedas.
Outro conceito que faz parte deste universo e que logo poderá ser bem comum é o dos smart contracts (contratos inteligentes, em português). Eles são códigos redigidos em linguagem de programação, cujos dados são compilados e publicados em redes descentralizadas – as blockchains – que utilizam a tecnologia peer-to-peer (ou P2P).
Imagine que você tem um contrato que seja auto-executável, ou seja, que automaticamente faz aquilo que foi acordado entre as partes. No caso dos bitcoins, é uma compra e venda de criptomoedas. Mas este contrato pode ter várias cláusulas que podem ser inclusas, como a herança dessas moedas virtuais para um filho, por exemplo. Se por um acaso o proprietário dos bitcoins falecer, esse valor é transferido, conforme registrado ali, de forma automática.
Outro ponto a ser observado sobre os smart-contracts é que eles são inalteráveis. O que foi colocado ali, vai permanecer ali.
“A tecnologia de Blockchain, por ser um sistema descentralizado, é a única que consegue atender os requisitos necessários para que os smart contracts possam existir efetivamente. Com o sucesso do Bitcoin, as pessoas começaram a querer representar outros ativos em seu blockchain. Apesar de ser possível, a linguagem do Bitcoin é limitada por design, para ser mais segura e eficiente. Devido a essas limitações, e com a ideia de ser uma plataforma de smart contracts de propósito geral, foi criado o Ethereum. Sem dúvida é a plataforma que fez esse termo se tornar conhecido”, explica o Co-Fundador e CTO da Finchain, Marco Vieira.
Essas características podem nos levar a algumas dúvidas, se observado do ponto de vista jurídico. Elas são válidos no “mundo real”? Pode ser usado para algum outro tipo de negócio? E se eu mudar de ideia sobre algo que está ali? Levamos esses questionamentos a Leonardo Matrone, que é advogado e entusiasta da tecnologia blockchain. Confira!
Os smart contracts são uma nova forma de viabilizar as relações jurídicas, que otimiza o consumo de tempo, recursos humanos e financeiros, ao mesmo tempo em que confere dinamismo, transparência e auditabilidade, além da tão importante imutabilidade das informações. Assim, não há nada que impeça o reconhecimento da validade jurídica dessa forma de contratação/programação. Recentemente, aliás, a justiça paulista reconheceu como prova idônea um registro realizado em blockchain, por meio de um smart contract. A tendência é que cresça o número de decisões judiciais sobre o tema.
Devido aos atributos de imutabilidade e transparência (por estarem publicados em blockchain), os smart contracts podem ser utilizados também para o registro de fatos jurídicos, como o nascimento de uma pessoa, a declaração pública de união estável, uma invenção (neste caso, preservando-se a prova da anterioridade, por meio do registro imutável dos dados realizado em determinada data/hora), um testamento, um clube de investimentos, um trust para planejamento patrimonial/sucessório e, até, a criação de sistemas de arbitragem ou solução de conflitos.
No âmbito específico da criptoeconomia, além de regular transações com criptomoedas, smart contracts têm o potencial de tornar ativos mobiliários - como ações ou quotas de fundos de investimentos - totalmente digitais e negociáveis de forma descentralizada (note-se: sem a necessidade de um intermediário, como uma bolsa de valores, o que constitui um grande fator de disrupção do modelo atual).
Eles também podem dar suporte (back-end) para sofisticadas aplicações descentralizadas (DApps). O potencial de utilização dos smart contracts é realmente impressionante e depende da criatividade dos participantes e desenvolvedores.
Para se publicar um smart contract, é necessário que as partes tenham uma clara definição do que se pretende regular, já que todos os cenários e consequências daquela relação jurídica deverão ser predefinidos - e serão executados, porque são imutáveis. É importante mencionar que podem ser programadas cláusulas/condições que regulem situações em que haja mais de um caminho a seguir. Tudo é programável. O simples arrependimento não é permitido nessa nova forma de contratação.
No entanto, caso as partes, consensualmente, desejem alterar alguma condição prevista no contrato já em execução, elas podem publicar um novo smart contract, que substituirá, total ou parcialmente, o anterior.
Nesta situação, basta que um novo contrato seja publicado, substituindo o anterior – como dito, total ou parcialmente – para a sua adequação ao sistema legal vigente. Para exemplificar, pensemos no sistema de criação de leis, ou da própria Constituição Federal: a “Constituição Política do Império do Brazil”, promulgada em 1824, deixou de existir? Não, seu texto permanece registrado nos arquivos públicos; constituições posteriores é que vieram para substituí-la. O mesmo ocorre com os smart contracts: novos contratos simplesmente substituirão os anteriores (e não os eliminarão) quando surgirem alterações legislativas que instituam essa necessidade.
Sem dúvida alguma. Os smart contracts têm grande potencial de utilização e certamente trarão muitos benefícios às relações sociais ao longo dos próximos anos. Por criarem conceitos disruptivos do sistema atual, estão em constante processo de aprimoramento, mas a segurança e a aplicabilidade já existem. Já existem várias startups no mercado que desenvolvem smart contracts para diversos tipos de uso.
Com o advento da blockchain e dos smart contracts, imprimir contratos em papel, grampeá-los e assiná-los com o uso de canetas, para depois se discutir a aplicabilidade ou não de determinada cláusula (com a intervenção de um juiz ou árbitro), parece já estar se tornando uma prática rudimentar. E esse arcaísmo não se soluciona com a simples criação de aplicativos ou plugins para a assinatura eletrônica de contratos convencionais, que não afastam as infindáveis discussões e interpretações de cláusulas, submetidas a decisões de intermediários, em procedimentos invariavelmente demorados e dispendiosos.
Trata-se de uma questão de tempo para que os smart contracts passem a ser utilizados em larga escala, o que passa, necessariamente, por uma evolução cultural: é necessário trazer o assunto para debate e, com isso, estimular a capacitação de profissionais, tanto na área da tecnologia quanto na área jurídica.