Na última semana, as redes sociais se dividiram entre quem postou fotos como um idoso por meio do FaceApp e quem fez textão para denunciar o aplicativo russo. Mas a questão vai um pouco além de um aplicativo vendendo nossos dados após uma brincadeira com fotos.
O reconhecimento facial foi usado, por exemplo, durante o carnaval de rua do Rio de Janeiro para identificar suspeitos de crimes entre os foliões. Na China, já é possível fazer compras por meio de um sorriso para a câmera de um totem de atendimento.
De tempos em tempos, o assunto vira pauta em discussões sobre privacidade, proteção de dados ou segurança digital. Afinal, o reconhecimento facial representa proteção ou invasão?
Conversamos com Renan Streciwilk, que é Head of Solutions Sales na Intelbras, e com o advogado José Neto, especialista em direito digital, para entender o que está em jogo com esta tecnologia. Confira!
Renan Streciwilk - O reconhecimento facial só vem para ajudar. Até hoje eu não vejo malefício, apenas benefícios. O benefício de ter uma autenticação mais rápida em sistema de controle de acesso. Com o crescimento das tecnologias, existirão muito mais pontos a se analisar na face que uma foto e isso garante que haja uma assertividade acima de 90%.
O que é a privacidade? Eu acho que esse é um ponto que dá muito pano pra manga. Hoje em dia, apenas na sua casa você teria privacidade, fora isso não existe mais. Você sai de casa e você já é filmado pelas imagens do condomínio. Saindo do prédio tem as imagens da Secretaria de Segurança Pública. Fora as pessoas que tem câmera em casa para cuidar do filho ou do cachorro, e que você também está sendo filmado. Hoje o que a Secretaria de Segurança Pública faz é automatizar o serviço da Polícia. Qual é a diferença de você ser reconhecido por uma câmera do que ser reconhecido por um agente policial? Se você foi reconhecido por ele ou por um sistema que o avisou, a abordagem é a mesma.
Hoje em dia, no universo da segurança pública, há um policial olhando cada câmera. Com o avanço do reconhecimento facial, a busca por criminosos e por pessoas desaparecidas vai ser totalmente automatizada e melhorada. A inteligência da máquina vai fazer o que o humano não consegue.
José Neto - Com o avanço da tecnologia, em especial da Inteligência Artificial, tem aumentado significativamente o uso de imagens das pessoas para os mais diversos fins.
Chamou a atenção durante o carnaval a notícia de que um homem que estava foragido foi reconhecido pelo sistema de Reconhecimento Facial da polícia, mesmo estando vestido com trajes femininos, sendo então recapturado.
Mas afinal como funciona o reconhecimento facial?
Um banco de dados é alimentado por milhares de imagens e, através de softwares específicos, essas imagens são "medidas" e categorizadas, ou seja, o sistema consegue medir o formato facial, a distância entre os olhos, o tamanho do nariz, dentre outras características do rosto. E isso torna possível a identificação de um indivíduo. É dessa forma, por exemplo, que o Facebook consegue sugerir a marcação de pessoas em uma determinada foto.
Mas isso é uma proteção ou uma invasão à privacidade das pessoas?
Esta é uma questão difícil de ser respondida, porque o uso do reconhecimento facial pode ser utilizado para questões de interesse público, como as investigações penais, para implementar processos de melhorias que eliminem filas ou para trazer anúncios de produtos ou serviços personalizados para cada pessoa.
Apenas a análise do caso concreto e o respeito às normas previstas na LGPD é que poderão determinar se houve ou não uma invasão da privacidade.
Esse tema ainda será alvo de bastante debate.
Renan Streciwilk - Tudo depende. No caso da segurança pública, são agentes que estão na busca de fugitivos, de pessoas desaparecidas, são ganhos extremamente altos para a sociedade. Às vezes há um criminoso do lado de um policial e ele não é reconhecido, mas o sistema está ali para reconhecê-lo e mostrar que o cara está fichado.
E existem outras vertentes do reconhecimento facial. No retail, com o sistema te reconhecendo como cliente VIP. Ao invés de haver uma pessoa na porta, o sistema vai reconhecer quem é VIP, de forma automatizada. E ele pode buscar parâmetros, ao invés de identificar pessoas. Eu posso querer saber se é homem ou mulher, qual a idade. Fazer um filtro de fluxo. O sistema só está automatizando o que poderia ser feito por pessoas.
José Neto - Nos últimos dias, milhares de pessoas utilizaram o aplicativo FaceApp. Esse aplicativo, através do uso de filtros apresentava uma projeção de como as pessoas ficariam quando envelhecessem.
Aparentemente apenas um aplicativo despretensioso, mas que logo chamou a atenção para a coleta de dados dos usuários.
Nesse caso, o grande problema é que o aplicativo coletava dados além do que era necessário para aplicar o filtro prometido, como acesso a todas as imagens do usuário, agenda de contatos, dentre outros.
Esse caso fez ressurgir a discussão quanto à privacidade dos usuários, especialmente quando fornecem suas imagens. Pra onde estas imagens estão indo? O que estão fazendo com elas? Quem tem interesse nessas imagens?
Embora não saibamos o certo como esses dados estão sendo utilizados - especialmente antes da entrada em vigor da LGPD, o que deverá ocorrer em só em 2020 - não é difícil presumir que empresas estão lucrando (e muito) com esses dados.
Esses dados podem ser repassados ou vendidos para os mais diversos segmentos do mercado, desde aquelas empresas que buscam tornar mais eficazes sua segurança interna e evitar perdas, a exemplo daquelas que fornecem crédito ao consumidor, utilizando o reconhecimento facial para garantir que alguém não tenha a identidade trocada, até empresas que podem utilizar desses dados para promover algum tipo de discriminação ou segregação em razão da cor da pele, estilo do cabelo, etc.
O fato é que hoje ainda estamos em uma área cinzenta de como esses dados são utilizados pelas empresas.
Essa incerteza deve ser reduzida com a entrada em vigor da Lei Geral de Proteção de Dados, que dará ao titular o direito de saber com exatidão e clareza o que cada empresa está fazendo com seus dados.
Renan Streciwilk - Na verdade, a GDPR não aborda reconhecimento facial em si. Ele fala de dados das pessoas. Nome, CPF, email, cartão do banco. O reconhecimento facial é a mesma coisa que eu te identificar na rua, com a diferença de que é uma máquina que está fazendo isso. O GDPR não aborda essa questão porque não é uma questão de dados sensíveis.
José Neto - Inicialmente convém aqui fazer breve distinção entre intimidade e privacidade. A intimidade é âmbito mais profundo, mais secreto da pessoa, algo inacessível, invisível, que só a própria pessoa conhece. A privacidade contém a intimidade, mas vai além, pois abrange a exteriorização física dos atos humanos.
Imagine que a privacidade é um círculo maior, que contém um circulo menor (intimidade) e que por sua vez, contém um outro círculo ainda menor (o segredo).
O reconhecimento facial é uma forma de autenticação biométrica que permite a confirmação da identidade de alguém, e por esse motivo são considerados dados sensíveis para fins de aplicação da LGPD.
De acordo com o artigo 5 da LGPD, dado pessoal sensível é todo dado pessoal sobre origem racial ou étnica, convicção religiosa, opinião política, filiação a sindicato ou a organização de caráter religioso, filosófico ou político, dado referente à saúde ou à vida sexual, dado genético ou biométrico, quando vinculado a uma pessoa natural.
Sendo assim, os dados sensíveis merecem proteção extraordinária, pois mergulham ainda mais na privacidade da pessoa, alcançando sua intimidade, como é o caso dos dados relativos à saúde ou orientação sexual. Por isso são passíveis de trazer algum prejuízo ou descriminação ao seu titular.
Na GDPR é ainda mais clara a proteção aos dados sensíveis. Pois se utiliza a expressão “revelar origem racial ou étnica”. Isso significa que mesmo utilizando-se dados indiretos, mas que revele através de um cruzamento de dados características de dados sensíveis, haverá a proteção da lei.
E você? O que pensa sobre reconhecimento facial? Deixe o seu comentário!